Domingo de natal. Quatro horas da tarde, um calor escaldante em Rio Pomba, terra da
minha sogra, onde vim passar as festas de Natal, junto à família da minha esposa.
Após acordar de um gostoso cochilo, proporcionado por um lauto almoço,
precedido por várias garrafas verdes da minha cerveja preferida, acordei meio
combalido pelos excessos dos últimos dias, com uma vontade danada de mergulhar
num balde de sorvete. No silêncio da casa vazia, adormecida pelos licores natalinos,
vesti meu calção, coloquei meus tênis e saí sem fazer barulho. Bem
desacostumado de passeios sobre duas rodas, peguei a bicicleta nova do meu
cunhado, estacionada no portão da frente, e rumei para a sorveteria na praça
central.
Estacionei a bicicleta na entrada
da sorveteria, tossi algumas vezes para acordar um velho senhor que, assustado
com a quebra do silêncio da cidade entorpecida, olhou-me meio atravessado, pela
importunação do seu cochilo. Pedi o maior vasilhame para sorvete a quilo e, sem
muita preocupação com sabores, enchi-o com uma dúzia de bolas de várias cores
diferentes.
Sentei-me o mais confortavelmente
possível numa esquelética cadeira de plástico, abstendo-me de esticar as pernas
em outra, achando que não valia a pena tamanho risco. Comecei então a realizar
o sonho de alguns momentos atrás. Alguns prazerosos instantes depois, a atenção
à bela empreitada que me propus foi quebrada por um nhéc, nhéc bastante
incômodo, de um grotesco quadro de duas crianças molambentas, entre oito e dez
anos, montando uma surrada e exausta bicicletinha infantil, que cuidadosamente
estacionaram junto à minha.
Bastantes tímidos, adentraram à
sonolenta sorveteria, observaram por vários minutos algumas prateleiras
abarrotadas de saquinhos coloridos, uma sequência de três grandes freezers,
abarrotados com potes de sorvetes e agora com a coragem um pouco mais crescida,
arriscaram:
- Moço o que o senhor tem aí que
dá pra comprar com 1,50?
- Aqui a gente não tem nada com
este preço!
- Nem um copo d’água?
- A água eu dou de graça! E,
talvez um pouco movido pela situação, disse sem muita convicção: Leva este
saquinho aqui de dois reais, por 1,50.
Saindo um pouco da minha letargia
e com o coração adoçado por centenas de gramas de açúcar refinado, disse de
supetão: Vocês não sabem que dia é hoje, não? E, tendo um não como resposta,
emendei: Hoje é rebarba de Natal! E, calmamente, com estudada seriedade,
comecei a explicara importância da data: Assim como tem a véspera de Natal todo
ano, de sete em sete anos, quando o dia vinte e seis de dezembro cai num
domingo, é rebarba de Natal. Neste dia, quando a gente entra numa sorveteria, a
gente pode pedir tudo o que quiser e comer o tanto que aguentar. Num é mesmo
meu senhor? Procurei apoio com o dono do estabelecimento. Meio desconfiado, o
velho só ajudou com umas tímidas balançadas de cabeça. Pois então, mandem brasa
que esse dia é só de sete em sete anos, exclamei para dois rostinhos pasmos,
quase não acreditando no que ouviam.
Depois de um certo tempo, que não
dá pra lembrar quanto (pois de vez em quando ele costuma passar devagar...quase
parando), os meninos completamente saciados, se dirigiram para o velho dono,
agora um pouco mais sorridente pelo inesperado movimento: Muito obrigado seu
moço! O velho senhor, agora mais amaciado, tentou dizer: Vocês tem que
agradecer é a... Jesus Cristo – gritei a tempo. Natal é aniversário de Jesus
Cristo, embora a maioria ache que é o aniversário do Papai Noel.
Felicíssimos os dois meninos
saíram para pegar a sua cansada bicicletinha, quando eu gritei lá do meu canto:
Ôh, meninos, que dia é hoje? – Hoje é rebarba de Natal, responderam em uníssimo.
– Pois então, leva esta bicicletona aí do lado! – Mas... E antes que
completassem eu disse: Pode! Hoje é aniversário de Jesus... hoje é rebarba de Natal.
Depois eu resolvo com o meu
cunhado.
Sorria! – O Sorriso iguala as
pessoas.